Este projeto foi contemplado pela Fundação Nacional de Artes – FUNARTE no edital Bolsa Funarte de Residências em Artes Cênicas 2010.

quarta-feira, 20 de abril de 2011

MELODRAMA

E enfim chegamos no Melodrama, o último território que exploramos antes de um período de férias de três semanas. Difícil!!! Beeeem difícil!!! Creio que até então o Melodrama foi o território dramático em que nós encontramos as maiores dificuldades como atores. Bem, pra começar, é importante dizer que embora tenhamos uma grande referência fruto do estilo melodramático no Brasil, isto é, as telenovelas, o que trabalhamos com Gaulier está muito longe das tramas brasileiras e do registro de atuação melodramática das mesmas. O Melodrama ao qual empreendemos uma busca com Gaulier é oriundo da tradição francesa, e mais, da tradição teatral parisiense do século 19. Importante dizer também que o gênero ou estilo teve suas origens aqui na França, e, Gaulier, ao que parece, parte desta tradição, de onde tira as lições de atuação e aplica em seu curso, claro que com sua peculiar forma de trabalhar. O melodrama é um território amplo. Embora um estilo com características particulares, é, segundo Gaulier, uma grande escola de atuação de onde o ator pode extrair grande parte das “regras de atuação”, como se movimentar, como usar a voz, como ter pontos fixos etc. Trata-se de um registro complicado de chegar nos dias de hoje, pois a grandiloqüência deste território facilmente cai num exagero cômico, coisa da qual devíamos tomar distância. No melodrama há por natureza a possibilidade do exagero, mas de um exagero com credibilidade séria, com o afinco daqueles que no Brasil muitas vezes descrevemos como “atores garra nojenta”, daqueles maravilhosos atores de uma geração anterior de onde a principal técnica brotava do amor pelo teatro e pelo público.
Não trabalhamos com textos teatrais melodramáticos. Segundo Gaulier, os textos do melodrama não são bons textos para o ator, com exceção a algumas obras de Victor Hugo. Em geral, trabalhamos então com temas de improvisação a partir de muitas situações que podem ser encontradas em textos de Victor Hugo e alguns outros dramaturgos franceses, além de temáticas criadas por Gaulier e/ou inspiradas em melodramas que o próprio Gaulier assistiu. Trabalhamos com uma gama imensa de situações, entre elas estavam: a mãe que abandona o filho às portas de um orfanato porque não tem condições financeiras de criá-lo; os irmãos separados deste a infância que se reencontram anos mais tarde; o marido que foi lutar na guerra e depois de 20 anos, após pensarem que estava morto, volta pra casa da família e encontra sua esposa casada com outro, e por aí vai. Gaulier sempre introduz cada situação de uma forma especial, contando-nos uma história maior, falando também de detalhes técnicos aos quais os atores devem prestar atenção. Entre estes detalhes técnicos de atuação e princípios do território melodramático, estão:



O ator antes da personagem
No melodrama o ator está definitivamente antes da personagem, e é por isso que Gaulier gosta de trabalhar com o estilo, porque, segundo o mestre, enquanto atores, podemos descobrir coisas muito interessantes sobre os nossos próprios processos de trabalho. Segundo Gaulier, não faz mais sentido se montar um melodrama nos moldes clássicos hoje em dia, mas sim, faz todo o sentido explorar o melodrama como campo de pesquisa da atuação. Dentro deste campo de pesquisa o ator de hoje joga uma espécie de “ator antigo”, quando, de certa forma, o charme pessoal do ator era mais importante do que a personagem. Gaulier falava muito que, mesmo com uma grande maioria de personagens pobres, os atores são sempre “belos”, com uma presença grande e generosa para com a platéia. “Existe uma conexão especial entre o ator e o público no Melodrama. O ator deve amar o público, faz tudo para e pelo público. Você tem que dar muito como ator no Melodrama. Como Edith Piaf, quando ela está em cena podemos ver que ela está dando tudo.” (Gaulier em aula)

Mesmo quando o personagem é mau, o ator deve manter seu charme, ainda que, o grande objetivo, é fazer com que a platéia do teatro odeie o personagem, mas ame o ator: “A platéia atua também, se não gostam do ator (que faz o mau) jogam legumes nele. As vezes a platéia tem uma tendência de dormir, então é a hora do mau entrar, gritando e sendo terrível com as pessoas boas, e a platéia então acorda para vaiá-lo. Se o mau recebe muitos legumes, o ator sabe que fez muito bem seu personagem nesta noite.” (Gaulier em aula).



Os atores de Monsieur Dumas:

Philippe nos contou a história de Monsieur Dumas, um antigo professor de teatro do século 19 que tinha uma escola de atores na cidade de Grenoble, na 17 Avenue Gambetta. Segundo Philippe, os grandes atores do melodrama foram alunos do Monsieur Dumas, e, ficcionalmente, Philippe nos convidou a sermos nós os ex-alunos do mestre do Melodrama. Então, para Philippe, tínhamos quer sermos “atores do Monsieur Dumas”. Monsier Dumas tem 2 filhos, Nicole Dumas e Françoise Dumas. Nicole e Françoise, por vezes, escondidos do pai, vão para o topo de uma montanha para fazer sexo com os alunos da escola atrás de uma pedra. Na verdade Nicole tem uma pedra e Françoise tem outra pedra. Quando algum de nós estava de alguma forma chato ou sem vida em cena, Gaulier dizia para que nos lembrássemos de nossas relações sexuais com Nicole ou com Françoise... “Ah... Nicoooole... Ah... Françoise...”, e que, com este prazer relembrado, voltássemos a fazer uma determinada cena ou improvisação. Monsieur Dumas é mais um elemento de jogo para o ator, faz parte da construção de um imaginário que Philippe faz para que nos aproximmemos do universo do Melodrama. Em realidade, Gaulier sempre constrói histórias e universos imaginários em todos os workshops, o que muito auxilia os atores a, através desta espécie de desvio imaginativo, conquistar uma realidade de jogo, uma qualidade que não se direciona única e simplesmente a atingir um objetivo técnico, mas sim a libertar a criação em todas as suas possibilidades.


Caminhadas Semi-círculo:
Gaulier trabalhava conosco uma especial forma de se mover em cena. Uma das características na atuação melodramática diz respeito às caminhadas. O melodrama foi representado em grandes teatros na França, com palcos largos e com grande profundidade. Então, para explorar as dimensões do palco, o ator deve evitar caminhar em linha reta, a fim de fazer “render o palco”. Em princípio nos era difícil realizar este princípio com naturalidade, mas, com o tempo, o corpo se acostuma e aprende sobre o espaço por meio destas caminhadas, elas então tornam-se mais orgânicas e incorporam o palco como um pilar forte que ajuda a dar suporte à atuação




O Povo de Paris nas galerias do teatro:
É para o povo pobre de Paris, sentado nas galerias do teatro, que os atores representam. Gaulier diz: “como ator, eu atuo para meu público, e meu público é o povo, e eu pego minha inspiração do povo”. Sendo assim, o Povo de Paris é um fictício elemento de jogo que Gaulier coloca para os atores interagirem o tempo todo. Em muitos momentos de nossas improvisações tínhamos que dar pausas estratégicas e olhar para o “Povo de Paris”, isso significa olhar um pouco acima da linha do horizonte. As vezes um ator faz isso sozinho, as vezes dois ou mais atores fazem isso juntos. Estas pausas com este olhar específico são colocadas em momentos de suspense, surpresa, humilhação etc, e criam grandes expectativas no fictício Povo de Paris que passa a querer avidamente saber o que virá nos momentos seguintes do desenrolar da ação. Para esclarecer cito o exemplo de um exercício. O tema era o de um pai que havia abandonado o filho. Anos depois este pai está para ser despejado de casa por não estar com as contas em dia. Então, procura um jovem advogado. Começa a cena sem saber, mas o advogado é o seu filho abandonado. Quando os dois se encontram pela primeira vez, ambos os atores olham para o povo de Paris, juntos. A platéia então pensa “hm... aí tem algo!!! Algo grave está para vir!”. Em um momento o advogado-filho se retira de cena para consultar livros jurídicos e o pai, ainda em cena, vê, em cima da mesa do advogado, uma medalhinha, objeto que provoca o reconhecimento de que o advogado é seu filho. O advogado volta à cena. O pai está quase a ponto de contar, mas não fala nada e se retira de cena. Antes de sair, olha para o povo de Paris, e o povo imaginário clama para que ele conte ao filho que é seu pai, mas o pai acaba por sair de cena sem contar nada. Enfim, estes olhares para o Povo de Paris estabelecem cortes estratégicos nas ações dos atores, para, a partir do não-discursivo, estabelecer uma determinada atmosfera em cena. Além dos olhares existem também tempos a serem dados, pausas nos textos para que o Povo de Paris comente a cena, ou, por exemplo, vaie um personagem que está sendo mau com os demais.

O sorriso do vegetariano que ama cenouras:
A maior parte dos personagens que jogamos eram pobres, pessoas do povo. O personagem pobre no melodrama é conformado com a sua situação, é sofredor e bom por natureza. Não há pobre comunista no melodrama, muitas vezes nos disse Gaulier. Philippe muitas vezes em seu tom debochado pedia-nos para buscarmos em nossas atuações “o olhar e o sorriso do vegetariano que ama cenouras”, um olhar do “pobre mais feliz”, miserável mas alegre, algo que transita entre estas zonas extremas. O que importa no campo da atuação é conseguir uma espécie de pureza e inocência de um personagem que definitivamente não se revolta com a condição medíocre em que vive. Neste sentido, creio que a revolta fica para o público, ao sentir pena do sofrimento do coitado do herói melodramático.


A voz e o gestual
O ideal da voz no melodrama é um registro entre a fala e o canto. Existem algumas gravações com Sarah Bernhardt dando textos, ou mesmo alguns registros de Artaud falando podem dar uma idéia. Gaulier mostrou-nos algumas gravações de áudio de atores do século 19 ou do início do século 20. O que posso dizer é que o registro é ao mesmo tempo visceral e melódico, mas muitíssimo difícil de se chegar e também estranho aos ouvidos contemporâneos, pois tal registro responde certamente à outra época. Em geral não trabalhamos tentando buscar este tipo de registro, Gaulier não insistiu neste ponto, mas sim, trabalhamos no sentido de “atualizar” a potência daquelas vozes estridentes e grandiosas, mas no encontro com nossos próprios registros. Mas a voz é algo extremamente importante no Melodrama. Deve ser grandiosa para abarcar toda a platéia, acordá-la, porque, segundo Gaulier, o Povo de Paris tinha uma forte tendência de dormir e algumas pessoas não escutavam bem. Da mesma forma acompanha o gestual, através do corpo grandiloqüente, expandido. O corpo permite a leitura das emoções dos personagens. Mas isso não deve ser feito “à frio”, isto é, o gesto deve acompanhar um estado pungente do ator, do contrário tudo fica num nível superficial. Logo que começamos o workshop era visível que em nossos pré-conceitos sobre o melodrama, nos perdíamos numa movimentação meramente decorativa. Com o tempo, fomos vendo que o corpo desempenha gestos grandes a partir de uma dilação que, numa via de mão dupla, acontece para o exterior (o espaço) e o interior do corpo (o estado), e que de nada adianta fazer gestos expansivos se o ator não se encontra internamente tão expandido quanto. Esta é uma questão muito importante porque muitas vezes a dificuldade maior residia em tomar o risco de ir até os limites, até a máxima grandiloqüência, sem cair no ridículo. Mas, quando se chegava neste território verdadeiro do melodrama, o que inicialmente podia parecer ridículo dava a volta em si mesmo fazendo-nos emocionar ao ver uma cena onde os atores tomavam tal risco.


Os sapatos barulhentos e a roupa dos pobres.

Segundo Gaulier no Melodrama “Os sapatos devem ser barulhentos, porque o povo de Paris não tem dinheiro para comprar bons óculos e o sapato tem a função de mostrar para as pessoas que não enxergam bem onde o ator está no palco. Os atores não são leves em cena, devem fazer a platéia acompanhá-los pelo barulho do sapato.” A atuação no Melodrama é sempre marcada por este barulho. Pelo barulho do sapato a platéia pode saber que um personagem entrará em cena, pelo barulho do sapato a platéia pode saber que ele sairá, pelo mesmo barulho podemos saber se o personagem está feliz ou triste, e por aí vai. Quanto às roupas, Philippe nos pediu para que vestíssemos roupas de pessoas pobres, mas limpas, um pouco como as indumentárias dos pobres no século 19 em Paris. Gaulier nos pediu uma roupa “chata”, isto é, sem muitas cores, sem cortes requintados ou personalizados, a roupa tem que ser da gente mais comum possível. Creio que isso tem a ver com a estética do Melodrama em sua versão original, quando os personagens tentavam espelhar o povo pobre da França (no caso do melodrama francês obviamente), gerar uma espécie de identificação com a platéia.


Bem, finalizando, posso dizer que jogar o melodrama é jogar num território de extremos, de conflitos cotidianos que levam os personagens comuns a derramarem sua carga emotiva de forma intensa e exagerada. Certamente para o grupo de alunos, que na maior parte já vem trabalhando junto desde Le Jeu (outubro do ano passado), este foi o território dramático mais difícil, que ofertou mais resistência. Muitas são as razões, particularmente creio que estávamos cansados, a carga horária da escola aumentou, e, pela primeira vez, adentramos num território mais fechado e estilístico, lidamos com um tipo de atuação que se distancia muitíssimo da atuação contemporânea (por mais que existam milhares de abordagens à atuação hoje em dia). Paradoxalmente, quando era bom, dizíamos a nós mesmos “isso poderia estar num espetáculo contemporâneo e seria maravilhoso”. Mas valeu muito a experiência, porque, talvez, seja este o território onde mais tenhamos aprendido sobre teatro e sobre nós mesmos, nossos limites, nossos fantasmas e nossas potências.

Beijos e até a próxima!

CHARACTERS


Olá amigos! Mais uma vez estou aqui, agora pra compartilhar a experiência do workshop Characters com Philippe Gaulier. Bom, pra começar, é interessante lembrar que o workshop anterior foi o de Máscaras e que no momento final deste demos especial atenção às máscaras que nós mesmos produzimos, jogando em cena com máscaras feitas pelo próprio ator e com máscaras que colegas fizeram. Philippe não fez nenhuma ponte verbal entre uma coisa e outra, mas, enquanto ator e observador, poderia dizer que há uma transição no sentido de que assim como as máscaras que nós mesmos criamos nos davam uma maior liberdade de criação nas improvisações, pois não tínhamos quaisquer prerrogativas a respeito delas, eram totalmente inéditas e cabia a nós dar a vida a cada uma delas experimentando possibilidades para que de fato “existissem em cena”, Characters só abdicou do artefato máscara (facial) para que, de alguma forma, esta máscara fosse agora o corpo inteiro, isto é, para que partíssemos de uma composição exterior em busca da criação da lógica de x ou y personagem. Explico melhor. No primeiro dia, por exemplo, o exercício que fizemos em Characters foi o de vestirmo-nos com as roupas de algum dos nossos colegas de turma, ou melhor, jogar o comportamento deste colega, jogar com o prazer de ser este outro. Para o segundo dia, Gaulier pediu-nos que fossemos para escola de forma com que nenhum de nossos colegas pudesse nos reconhecer, e aqui está o cerne do workshop em questão, jogamos neste workshop o tempo inteiro com o que Gaulier chama de “O PRAZER DE QUE NINGUÉM PODE ME RECONHECER”. E é neste exato ponto que podemos conectar o trabalho aqui proposto com o trabalho realizado nas máscaras. Em Characters construímos nossos personagens claramente do “exterior para o interior”. A partir de uma forte caracterização externa, Gaulier nos jogava em uma séria de situações improvisacionais a fim de que construíssemos via jogo a lógica, os desejos, os conflitos, os gestos, a voz etcetcetc de cada personagem. Neste sentido, os personagens que trabalhamos, de certa forma, podem também serem vistos como máscaras, se pensarmos a máscara como uma composição externa ao qual o ator deve dar vida.

Durante um mês propusemos uma série de caracterizações. Em cada aula testávamos estas caracterizações em vários exercícios. Depois de algum tempo jogando uma figura, um personagem, Philippe costumava nos dar um retorno, isto é, se aquele personagem deveria ser aprofundado ou se o ator deveria abdicar dele e propor algo totalmente diferente. Todos os atores da turma tiveram pelo menos uma mudança de personagem. Quando Philippe via que o ator conseguia um “algo mais” em alguma das caracterizações, então nos dizia para aprofundarmos determinado personagem, mantendo-o nos dias e exercícios seguintes a fim de criarmos desdobramentos daquela figura. Abaixo listo alguns princípios importantes no trabalho de Characters, tentando explicá-los para, na medida do possível, esclarecer melhor o território em que nos encontrávamos:


O Ator e o Personagem: Embora a caracterização fosse um ponto muito forte neste trabalho, isto é, a total transformação do ator em alguém praticamente irreconhecível, Philippe uma vez nos disse: “você sempre entra em cena como ator, com as características de um bom ator: cumplicidade, olho no olho, uma bonita aura (...) se você tem um jogo com prazer, o personagem segue você”. Este ponto diz respeito ao prazer e aos outros componentes que o ator deve manter como uma espécie de cama aonde o personagem vai se deitar, vai, como diz Gaulier, “seguir o ator”. Se estes elementos primeiros não operam, o personagem pode não existir, ou, ao contrário, pode ser melhor que o ator, isto é, quando você vê que a idéia de personagem é boa mas o ator não possui um jogo que dê suporte ao personagem, e, para Gaulier, teatro é antes de tudo calcado na qualidade do jogo do ator e não em idéias pré-concebidas.

Mostrar o Personagem: Quando o ator entra em cena é interessante que este tenha algum momento de ponto fixo com a finalidade de que o público veja o seu personagem (um pouco como acontecia no trabalho com as máscaras)... O público tem que ver a face do ator. Isso é um ponto bastante importante, pois, algumas vezes, os atores se escondem em cena, entram em cena, mas é como se a platéia não conseguisse vê-lo, porque o ator de fato não dá um tempo para a platéia assimilar a figura que acaba de entrar ou porque o ator atua com a face virada do meio para o fundo do palco, se esconde por insegurança ou algum outro motivo que lhe é pessoal.

Desconhecer o personagem: Como ator, você nunca deve pensar que sabe mais sobre o personagem do que a platéia. Isso é essencial no trabalho em Characters e para o trabalho do personagem em qualquer que seja o território dramático ou estilo. De certo modo, para Gaulier, o personagem só existe quando em relação com a platéia, e o ator necessita estar sempre poroso para as modificações que podem emergir deste encontro. Isso vale tanto para o trabalho do ator em exercícios quanto para um trabalho que já está ensaiado e apresentado. Você, como ator, nunca chega e impõe seu personagem ao público, sempre está descobrindo, tomando do público elementos que podem te ajudar. Complementa esta idéia uma outra colocação de Gaulier que diz respeito ao caráter de investigação contínua do personagem, isto é, mesmo que você tenha achado uma figura interessante, você sempre tem que buscar novos caminhos pro seu personagem, se você quer dar vida a ele. Existe um cuidado que o ator deve ter para não estar prisioneiro do personagem, não estar com uma pretensa profundidade, ou também, como muitas vezes falamos, não cristalizar em uma forma.

Cuidado com as IDÉIAS... Não é interessante mudar o personagem em função de uma idéia, mas sim em função do jogo.

Ponto Fixo e Cálculo: Como na máscara, você precisa ter pontos fixos em seu personagem, não se mover sem sentido. No nível individual, o ponto fixo diz respeito ao calculo perfeito das ações. “Você não deve se mover por nada”, diz Gaulier. As vezes, por ânsia, por não saber o que fazer, o ator se perde numa histeria corporal em cena: caminha para um lado e outro, gesticula demais, move seu olho perdidamente no espaço etc... Muito acontece para o ator, mas nada de fato acontece para a platéia, pois o ator permanece como se fosse uma espécie de borro em cena, uma imagem desfocada. Para trabalhar com esta dificuldade, Gaulier muitas vezes evocava a idéia do Ponto Fixo. Algo que é mais do que dar um stop nos movimentos, mas sim, ter uma capacidade de cálculo das ações, uma espécie de distanciamento, como que um terceiro olho que pode intuir a imagem que como ator você passa para a platéia. O ponto fixo tem a ver com o controle do ator sobre o seu próprio “estar em cena” e é uma idéia que perpassa o seu trabalho de personagem em nível individual, mas também na relação que você estabelece com o seu colega de cena em uma improvisação. Se o outro se move, é melhor que você não se mova tanto. Se você move, o outro faz um contraponto, fica mais parado. Isso não é uma regra estática e tão simplória como pode parecer, mas diz respeito a um sofisticado “sentido da cena” e também um “sentido de si na cena”, o que, se bem trabalhado, gera uma limpeza e um espaço necessário para que a platéia acompanhe um e outro ator. Por isso Gaulier constantemente nos falava que tínhamos que CALCULAR enquanto atores. Não pensar em sermos sinceros, profundos, verdadeiros, emocionados, mas sim calcular, ter o personagem como uma espécie de marionete com a qual nos divertimos e temos prazer em brincar, em manipular.



O Jogo, não o blábláblá:
Outro ponto fundamental. Por vezes um ator tem a tendência de preencher todos os tempos de sua atuação com palavras, querer ganhar a platéia por um jogo verborrágico ou tentar que algo aconteça num plano superficial de texto, num blábláblá. Com o tempo, isso passou a ser cada vez mais claro aos nossos olhos, ou, melhor dizendo, aos nossos ouvidos. Não se trata de não falar em cena, mas sim de saber que toda e qualquer cena tem que ser sustentada por uma qualidade de jogo que, ao que parece, escapa ao plano verbal. Difícil de explicar, mas fácil de perceber quando se assiste uma cena, e aos poucos, quando se faz uma cena também.


Cumplicidade entre atores:
“Como eu posso atuar com este ator?”, Gaulier nos instigava a questionarmo-nos. Muitos exercícios de Characters se davam com um ou mais atores em uma mesma cena, enfim, contracenando. A pergunta acima deve estar sempre em mente, ou seja, não devemos nos perguntar “como eu posso jogar com este personagem?” a relação em cena nunca é entre os personagens, mas sim entre os atores. Talvez a relação entre os personagens aconteça na imaginação da platéia, é uma relação no nível da recepção. Enfim, para Gaulier, por mais que você tenha uma figura muito bem construída, é o ator e não a figura que busca se relacionar com o outro ator e não com a figura deste último.

Vender o Personagem:
“Você tem que vender o seu personagem” (Gaulier). Vender o personagem pode parecer estranho, mas Gaulier nos disse isso algumas vezes. Mas cuidado, muitas vezes nos referimos a um ator que começa a fazer gracinhas para agradar a platéia como se este estivesse se vendendo para a mesma em troca de risos. Mas, neste caso, o ator está “vendendo” a si próprio, e não o seu personagem. “Vender o personagem” poderia ser visto como uma busca incessante do ator em por uma qualidade de contato com a platéia que seja mediada pela figura que está trabalhando, sem debochar da mesma, mas sim dando tridimensionalidade a ela, dando cores, aromas, sofisticando-a etc. Isso significa também tomar uma decisão de ser interessante em cena, mesmo que isso acabe sendo um grande fracasso, mas enfim, tomar risco sempre, outra coisa que Gaulier muuuuuuuito nos falou, não ter medo de ser ruim. Gaulier falava também que “não é porque um personagem é chato que o ator tem que ser chato”, isso também se relaciona com esta idéia de “venda”, na medida em que o personagem pode ser chato mas a platéia pode se divertir ou emocionar-se com ele, por conta do trabalho do ator.



Quanto aos exercícios, posso dizer que eles trabalhavam estes diferentes níveis no ator e, como conseqüência, no personagem também. Trabalhamos com dois tipos de improvisação, uma mais direcionada ao trabalho individual com o personagem, onde o ator não tinha um parceiro para estabelecer uma relação direta em cena, e onde também, muitas vezes, Gaulier representava uma espécie de entrevistador-inquiridor, colocando questões que traziam conflitos ao personagem e a partir das quais novas lógicas emergiam. O outro tipo de improvisação se dava com colegas em cena, quando buscávamos construir o personagem a partir do contato com o colega, com as situações que o outro nos propunha etc. Enfim, Characters foi um terriório de muita liberdade e prazer, uma grande brincadeira de teatro com todo o rigor exigido por Gaulier. Todavia, muitos atores encontraram dificuldades, e, uma atriz, depois de testar várias figuras sem obter muito sucesso em seu trabalho um dia perguntou ao mestre “O que deve mudar? O figurino?,A maquiagem? A voz?...” Ao que Philippe sem titubear respondeu: “ a atriz”. Isso é fundamental e na verdade quer dizer muita coisa sobre a pedagogia de Gaulier. No processo de formação da escola, uma coisa cada vez fica mais nítida – estamos ali trabalhando a nós mesmos, mudando verdadeiramente. Soa óbvio, mas isso quer dizer que, antes de aprender sobre um estilo ou gênero, a primeira e mais importante camada é aprender sobre nós e sobre como podemos ser “belos” no caminho de um estilo X ou Y. Daí uma sensação de estarmos sempre e “no fundo” trabalhando a mesma coisa embora os workshops se diferenciem.

Bem, acabo aqui hoje.
Beijos e até a próxima!!!