Este projeto foi contemplado pela Fundação Nacional de Artes – FUNARTE no edital Bolsa Funarte de Residências em Artes Cênicas 2010.

sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

MÁSCARA NEUTRA E TRAGÉDIA GREGA






Olá queridos!
Como viram, na postagem anterior falei um pouco sobre o trabalho de Gaulier em Le Jeu, os princípios de sua pedagogia e alguns acontecimentos em aula. Agora quero dedicar um espaço para realizar algumas colocações sobre o trabalho com a Máscara Neutra e a Tragédia Grega, último módulo que fiz na Ecole P.G. Bem, cabe inicialmente dizer que Gaulier é um Mestre, sim, com M maiúsculo. Quando saí de Le Jeu, achei que estava por dentro de sua pedagogia, das ferramentas que ele utilizaria em todos os demais territórios, o que, por um lado é verdade, pois, como exposto anteriormente, Le Jeu é a base. Mas Philippe é uma cebola infinita, quanto mais se tira uma camada, mais aparecem as novas, mais surpreendentes elas são. Existe algo em sua pedagogia que é impossível de delimitar conceitualmente (ao menos neste momento), é o que ele traz em seu olhar, uma capacidade de ver a partir do agora o momento seguinte. Não se trata de apenas dizer algo para os atores em relação ao qual tais atores não tinham consciência, mas sim de um poder quase mediúnico de prever se o que o ator está fazendo possui potencial para ser desdobrado em algo interessante ou já nasce morto. Bem, deixarei estas colocações como questões a mim mesmo, que, se eu for capaz, tentarei desenvolver mais adiante.
A Máscara Neutra: Primeiro dia de aula! Gaulier nos ofereceu uma história engraçada sobre o surgimento da máscara, envolvendo personagens como Jaques Copeau, Jean Dasté e sua esposa (que, se não me engano, era filha de Copeau). Tenho a história gravada (gravei no mp3) em meu notebook que deu pau, espero que o técnico consiga recuperar os arquivos, e, assim, depois quero traduzi-la e colocá-la aqui. Mas, pelo que eu me lembre, Gaulier falou sobre as aulas que Dasté tinha com Copeau, e que, aquele estava atormentado, querendo um tipo de máscara que pudesse servir de base para todas as máscaras, quando então a mulher de Dasté sonhou que o marido apareceu pra ela sem cabeça (ou algo do tipo), e, a partir disso, Dasté teve como um insight, o nada, o neutro, a Máscara Neutra!!! De qualquer forma fica um tanto claro que esta é uma história extra-oficial sobre o surgimento da máscara neutra, contada para divertir-nos, com um senso de humor bastante específico que é o de Gaulier. Juro que tentarei colocar aqui a versão integral da história assim que meu computador for recuperado!!! Bueno, uma das coisas que Philippe também disse no primeiro dia foi que A MÁSCARA NEUTRA SURGIU PARA LIBERTAR O ATOR, E NÃO PARA APRISIONÁ-LO! Penso que isso é um ponto fundamental trazido por Gaulier. Já ouvi muitos atores dizendo que têm pavor da máscara neutra, que sempre vão muito mal, que são execrados porque não possuem um corpo X ou Y capaz de dar conta da exigência física da máscara. Para Gaulier, ainda que seja muito importante a técnica corporal do ator (ele nunca disse isso, mas é perfeitamente notório que agrada mais ao mestre os trabalhos corporalmente mais sofisticados), é muitíssimo importante o prazer do ator sob a máscara, um toque daquilo que faz do técnico algo que chega ao território poético. Ou seja, um ator sob a máscara nunca pode ser chato. Não pode ser entediante ver um ator com a máscara. E, por vezes, mesmo que determinado ator não tenha atingido um nível técnico mais preciso, se este compartilha sua diversão com a platéia, está em relação à esta, Gaulier deixa-o em cena realizando seu exercício. È importante esclarecer que “compartilhar a diversão” não significa fazer uma gracinha para a platéia, mas sim, colocar em seu trabalho um “diferencial criativo” capaz de convidar a platéia a criar com você através da imaginação desta, ainda aqui a relação antes exposta (no texto de Le Jeu) entre prazer imaginação (Gaulier costuma dizer que o prazer do ator abre portas na imaginação do espectador) está presente. Outra questão que creio ser interessante apontar é sobre algo que ouso chamar de “pedagogia mínima” (me veio agora isso) de Gaulier. Em suas propostas de exercícios para a Máscara Neutra, Gaulier não expõe quaisquer regras demasiado restritivas, nada do tipo “você não pode fazer isso, você tem que fazer aquilo”... Basicamente, Gaulier lança uma proposta para 5 (as vezes mais, as vezes menos) atores realizarem em cena, como, por exemplo, “fazer a passagem do inverno para a primavera sob a máscara”. Os atores realizam a sua proposta, e, no final, ele tece alguns pequenos comentários do tipo: “isso estava chato ou eu estou completamente bêbado?”; “eu mataria este ator”, “se vocês estivessem em uma guerra e uma mulher dessas estivesse esperando vocês em casa, vocês provavelmente iam preferir morrer lutando pelo seu país, não?” (se referindo ao trabalho de alguma atriz); “não foi tão ruim” e por aí vai. Não existe em Philippe o que a máscara neutra é e o que ela não é, como ela age e como ela não age, isto é, não existe um corpo de “verdades” que ele te apresenta e ao qual você deva respeitar para fazer os exercícios. Ele realiza as propostas sem dar muitas explicações técnicas, e vai deixando em cena aqueles que de alguma forma estão conseguindo criar algo interessante com o que ele está propondo. Você tem que criar alguma coisa, e não reproduzir um edifício de princípios dados de antemão. Mas é reconhecível que os princípios vão sendo trabalhados pelo mecanismo de exclusão de Gaulier: se vc está sem tônus, o tambor bate (o tambor costuma bater quando Gaulier não gosta de um ator em cena e, portanto, finaliza seu exercício), se você está fazendo muito barulho com os pés no chão, o tambor bate, se você está concentrando seu trabalho nas extremidades do corpo, o tambor bate e assim por diante. Os princípios neste sentido são reconhecidos e formulados pelos e para os atores depois da experiência, e não antes dela, isto é, não são um ideal ao qual você tenha que atingir. Portanto, nunca chegamos a uma definição do que seja a Máscara Neutra para Philippe, a Máscara nunca é um fim em si mesma, mas sim uma ponte para desafiar o ator a corporificar imagens, paisagens, objetos, cores etc.
Alguns materiais que trabalhamos na Máscara Neutra foram:
Viagens e temas: O nascer e o pôr do sol!; A máscara na floresta; O lançar a pedra no mar; O Adeus ao Barco e outros
Cores: Laranja, verde, rosa, azul, vermelho e amarelo
Animais: Formigas, Aranhas, Ratos, Elefantes, Girafas
Elementos: Ar, Água, Terra, Fogo
Outros: Rocha, Prédio, Vidro, Batatas Fritando, cola, óleo e outros.

Bem, como vimos acima, são muitos os materiais trabalhados. E alguns materiais eu coloquei a título de referência ampla, pois, no trabalho com os elementos da natureza, por exemplo, Philippe sempre fornece diversas imagens. Neste sentido, nos dias em que trabalhamos a água, Philippe desdobrou-a em possibilidades como: um córrego onde passa um pequeno fio de água, a nascente de um rio, uma cachoeira, o mar, a chuva etc... Não cabe aqui esmiuçar cada imagem dada por Philippe e seus desdobramentos, mas o mais importante é que, na compreensão do trabalho de Philippe com a máscara, o que extraí é a extrema liberdade em termos de proposição de elementos a serem explorados, mas, também, o rigor na exigência desta exploração. Relacionado a liberdade da qual falo, Gaulier disse um dia “Eu posso dizer para os atores fazerem o laranja e isso ser um completo desastre! Mas pode ser que algum ator faça um trabalho lindo. Eu nunca sei o que pode ser um estímulo para um ator.” E é por aí que o trabalho acontece! Gaulier em conversas no final da aula, sempre dizia-nos para prestarmos atenção naqueles elementos com os quais tínhamos tido maior identificação, com aqueles que nos ajudavam a criar, que serviam como estímulo, para, se possível, buscarmos um aprofundamento nestes materiais..
Após um tempo em que já estávamos trabalhando com a Máscara Neutra, Gaulier começou então a adentrar o território da Tragédia. Já na segunda semana da Máscara Neutra, Gaulier pediu-nos para que decorássemos um trecho da Ilíada onde o narrador descreve um enfrentamento entre Heitor e Aquiles. Em alguns trabalhos com a máscara, Gaulier bipartia seu foco entre trabalhar um material, o fogo, por exemplo, o qual tínhamos que dar corpo sob a máscara, e, em determinado momento, dava um stop em seu trabalho e pedia para que uma assistente tirasse a máscara dos atores que estavam fazendo o exercício, a fim de que estes, mantendo o estado de determinado material conquistado sob a máscara, sobrepusessem, aos pouquinhos, as palavras do texto da Ilíada. Gaulier sempre pontuava para que não disséssemos o texto verborragicamente, e lhe agradava mais que mantivéssemos o estado e aos poucos as palavras saíssem quase como espasmos dos mesmos. Sempre interessava à Philippe que a palavra saísse calcada num impulso que antes de tudo é físico, e, por algumas vezes, utilizava de estratégias diferentes para fazer um ator entender esta dinâmica. Uma destas estratégias era a dos Sleepers. Esta consistia em botar o ator que estava em trabalho em frente à platéia, ao fundo do espaço cênico, e pedir para que outros dois atores “dormissem em suas pernas”, isto é, que cada ator deitasse no chão agarrando cada perna, gerando uma resistência para o ator caminhar, e provocando a necessidade de um impulso forte para que este conseguisse dar um passo. Quando o ator então dava este impulso, ele podia aos poucos colocar as palavras de seu texto, numa dinâmica impulso-texto, tentando diminuir o máximo de tempo do lapso entre um e outro, mas nunca colocando o texto antes do impulso físico. A metade deste segundo módulo, Máscara Neutra e Tragédia, mesclou um território e outro, quando então nos dedicamos a experimentar qualidades da máscara com os textos da Ilíada. Depois deste primeiro acercamento à Tragédia, pudemos escolher nossos textos trágicos, aqueles com os quais gostaríamos de trabalhar. Os alunos puderam aqui também escolher se trabalhariam em duplas ou sozinhos. Philippe propunha inicialmente a mesma dinâmica descrita anteriormente com a Ilíada, basicamente pedia-nos para que trabalhássemos um material visto na Máscara Neutra com o qual tínhamos nos identificado, e, posteriormente, solicitava-nos que falássemos o texto com tal material. Esta foi uma primeira aproximação, não sei exatamente, mas, para mim, me pareceu que Philippe estava se permitindo experimentar novas direções em sua própria pedagogia. Logo após, Gaulier começou a trabalhar cena por cena, focando, é claro, o ator, seu prazer em jogar os personagens trágicos. Philippe buscava conosco isso que ele chama de “beleza”, o que faz com que a platéia ame um ator segundo o mestre. Para isso, Gaulier costumava ver uma primeira proposição de cena realizada pelos atores, e, em cima desta proposição, o mestre agregava uma nova situação. Por exemplo, comigo, que peguei Tirésias em Antígona para trabalhar, Philippe propôs que eu jogasse uma velha que faz previsões, sensitiva, uma espécie de cartomante. Mas não é randomicamentre que ele propõe isso, já me conhecendo desde outubro, Philippe inferiu que este fosse um contexto no qual eu teria prazer em jogar a personagem. Inicialmente confesso que fiquei um pouco confuso, pois, de cara, entendi que Philippe queria me jogar num território cômico, me travestindo e me propondo esta velha senhora como mote de jogo. Mas depois pude constatar a potência da proposta de Gaulier, e, num segundo momento, consegui encontrar o prazer em jogar aquela figura, ainda que ela pendesse mais ao cômico do que ao trágico. A grande questão para mim então era mudar o registro (do cômico para o trágico) mantendo o prazer, uma questão que segue em nível de pesquisa pessoal. Infelizmente não tivemos muito tempo para trabalhar pessoalmente um por um com Gaulier na tragédia, pois o mesmo ficava muito tempo trabalhando só com algum ator em aula, e, por vezes, ficávamos quase uma semana somente vendo o trabalho de Gaulier com outros atroes que ainda não tinham trabalhado com o mestre. Mas aos poucos foi ficando cada vez mais claro o trabalho de Gaulier na Tragédia, principalmente na última semana. Como na Máscara Neutra, também aqui Philippe nunca falou “tragédia é isso, tragédia é aquilo... vocês tem que ser assim, fazer assado”. O que interessa a Philippe é a qualidade do jogo que se estabelece em cena, e, mesmo que por vezes este jogo toque o cômico, para Gaulier parece que o grande foco é que o ator mantenha a consciência do personagem como uma espécie de marionete, nunca buscando uma conexão emocional direta com os personagens, mas sim, divertindo-se em manipulá-los, fazer isso com inteligência e perspicácia. Por isso, para cada ator, ele lançava uma proposta diferente, muitas vezes fugindo ao que imaginamos de tragédia clássica (com aquelas túnicas e adornos antigos), tinha, por exemplo, uma Cliptemestra que era puta de cabaré, uma Cassandra inspirada em Hitler, uma Electra colegial e por aí vai... Creio que grande parte do grupo, a maioria inclusive, conseguiu assimilar a proposta de Philippe com a Tragédia Grega já na última semana, as sutilezas, os interstícios e filigranas de suas direções para cada ator. Mas o que fica é a liberdade para se trabalhar neste território, e os momentos onde alguns atores chegaram num registro trágico extremamente denso fugindo completamente de qualquer estereótipo acerca do mesmo!

Um comentário:

  1. adorei mas gostaria que voce me explicasse como fizesse um trabalho de escola com mascaras de tragedia grega

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